Introdução
O presente artigo terá como objetivo central analisar a aplicação e a vigência do Acordo TRIPS – Acordo sobre Aspectos dos Direitos da Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio – no Brasil, considerando que o tema ainda se encontra no centro de inúmeras discussões em âmbito internacional e também no ordenamento jurídico nacional, denotando, pois, um aprofundamento maior através deste estudo, a fim de buscarmos uma maior reflexão pelos estudiosos da Propriedade Intelectual.
Resumo histórico: O surgimento do GATT – Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio
No ano de 1946, ano em que o mundo se encontrava dividido politicamente e respirando os malefícios da Segunda Guerra Mundial, 23 países negociaram alternativas para combaterem inúmeras barreiras comerciais que pairavam sobre as nações internacionais naquela época, ameaçando, inclusive, a economia das principais potências mundiais. Uma das soluções encontradas foi a criação do GATT – Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio.
O GATT, um organismo internacional que regulou o cenário econômico estrangeiro por décadas, acabou sendo substituído no ano de 1994 quando, durante a Rodada do Uruguai de Negociações Comerciais Multilaterais, foi criado o Acordo TRIPS – Acordo sobre Aspectos dos Direitos da Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio – TRIPS.
O Acordo TRIPS no Brasil – considerações iniciais
O Acordo sobre Aspectos dos Direitos da Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio ou Acordo TRIPS, do qual o Brasil foi signatário, é parte integrante do Acordo Constitutivo da Organização Mundial do Comércio – OMC – um Acordo Internacional de maior porte, que possui dentre os seus 5 Anexos o Acordo TRIPS como sendo um deles (Anexo 1C).
TRIPS foi criado com os objetivos principais de reduzir as barreiras comerciais entre seus países membros, por meio da adoção de políticas de cooperação, como pode ser observado da leitura do seu artigo 67, que assim dispõe, verbis:
“a fim de facilitar a aplicação do Acordo, os países desenvolvidos Membros, a pedido, e em termos e condições mutuamente acordados, prestarão cooperação técnica e financeira aos países em desenvolvimento Membros e de menor desenvolvimento relativo Membros. Essa cooperação incluirá assistência na elaboração de leis e regulamentos sobre proteção e aplicação de normas de proteção dos direitos de propriedade intelectual, bem como sobre a prevenção de seu abuso, e incluirá apoio ao estabelecimento e fortalecimento dos escritórios e agências nacionais competentes nesses assuntos, inclusive na formação de pessoal”.
Além disso, TRIPS visava implementar um equilíbrio necessário para os direitos de propriedade intelectual, adotando medidas de proteção para tais direitos, evitando o abuso de direito por parte dos seus Estados-Membros.
Natureza jurídica do Acordo TRIPS – Tratado-Lei ou Tratado-Contrato?
Para uma reduzida corrente de estudiosos sobre o tema, o Acordo TRIPS tem a natureza jurídica de Tratado-Lei, por sustentarem que as suas normas foram criadas visando salvaguardar os direitos subjetivos dos particulares titulares de direitos de propriedade intelectual.
De outro lado, para a majoritária corrente doutrinária e jurisprudencial sobre o assunto, na qual nos filiamos, a linha de raciocínio é completamente oposta, isto é, para esta corrente o Acordo Constitutivo da Organização Mundial do Comércio – OMC, integrado por TRIPS, possui a natureza jurídica de Tratado-Contrato, sendo direcionado apenas para os interesses dos seus Estados-Membros.
Ainda para esta corrente majoritária, o fato do Acordo TRIPS se aplicar apenas aos anseios de países signatários consubstancia a necessária regulamentação das normas de TRIPS por legislação interna de cada Estado-Membro, antes de serem aplicadas nos ordenamentos jurídicos nacionais e invocadas por titulares de direitos de propriedade intelectual em suas pretensões individuais.
A polêmica sobre a aplicação e vigência do Acordo TRIPS no Brasil
Em linhas gerais, podemos dizer que a vigência e a aplicabilidade do Acordo TRIPS do qual o Brasil é signatário serão fixadas com base em critérios gerais (regime de transição geral) e especiais (regime de transição especial).
No Brasil, o Congresso Nacional aprovou o Acordo Constitutivo da OMC através do Decreto Lei nº 30 de 15 de dezembro de 1994 que, posteriormente, foi promulgado pelo Decreto Presidencial n.º 1.355, de 30 de Dezembro do mesmo ano referido. Apesar disso, sua vigência e aplicabilidade no país somente ocorreu a partir de 01 de Janeiro de 2000, ou seja, 5 anos após o ato de promulgação.
Analisando-se os critérios do Regime de Transição Geral, voltado para todos os países signatários do Acordo TRIPS sem distinção, verifica-se que nenhuma das obrigações ali contidas seria exigível antes de transcorrido o prazo geral de um ano, após a data de entrada em vigor do Acordo Internacional. É o que prescreve o seu artigo 65.1
Porém, excepcionando a essa regra geral, o Regime Transitório Especial para os Estados-membros em desenvolvimento, prevê um período transitório adicional de quatro anos de benefício, exceção feita aos arts. 3, 4 e 5 de TRIPS. O total do período transitório especial para esta categoria de signatários é de cinco anos, os quais resultam do período transitório geral de um ano, mais quatro anos do período transitório especial, nos termos do art. 65.2.
Fato é que os embates jurídicos a respeito do polêmico tema debatido no presente estudo se iniciaram quando as patentes concedidas sob a égide do Código de Propriedade Industrial anterior ao vigente se encontravam prestes a caírem em domínio público em virtude do término do prazo de exclusividade (15 anos) sobre a atividade inventiva. Por esse motivo, os titulares das patentes resolveram invocar as disposições do Acordo TRIPS na tentativa de evitarem essa inevitável perda.
Para tanto, os titulares de patentes com prazos de exclusiva próximos de terminar, ingressavam com ações judiciais de prorrogação de prazo patentário, sustentando a tese de que TRIPS já estava vigente no país desde Janeiro de 1995, por entenderem que o Brasil teria renunciado ao prazo de transição previsto no artigo 65 do Acordo TRIPS. Permissiva vênia, ousamos discordar desta posição.
Isto porque, TRIPS, em nossa humilde opinião, possui natureza de Tratado-Contrato, sendo dirigido tão somente aos Estados signatários e não aos particulares, não podendo sua aplicação no ordenamento jurídico nacional ser invocada pelos titulares de direitos de propriedade intelectual sem a prévia regulamentação de suas normas por legislação interna brasileira.
Além disso, para que fosse verdadeira a tese de renúncia pelo Brasil do prazo de prorrogação do artigo 65 do Acordo TRIPS far-se-ia necessária expressa manifestação de vontade neste sentido, o que não aconteceu, sendo certo que o fato do país ter participado da Rodada do Uruguai de Negociações Comerciais Multilaterais no final do ano de 1994, por si só, não representa qualquer tipo de desinteresse do Brasil pela renúncia àquele prazo.
Atualmente, o posicionamento ora defendido, é sustentado de forma pacífica por nossos tribunais, dentre os quais no Tribunal Regional Federal da 2ª Região
A pesquisa para a elaboração do presente trabalho foi traçada na vertente de que o Acordo TRIPS não gera obrigações e direitos às pessoas de direito privado, com base em julgados recentes do Superior Tribunal de Justiça, que vem caminhando no sentido de revisar seu posicionamento a respeito e de considerar que TRIPS não pode ser invocado objetivando a pretensão de se obter a prorrogação de prazo patentário.
O núcleo do debate doutrinário e jurisprudencial sobre tal problemática ainda é caloroso, sobretudo por conta do embate entre os interesses dos particulares, titulares de direitos de propriedade intelectual que, nos casos de patentes, almejam a prorrogação dos prazos patentários e, de outro lado, o interesse público, que visa assegurar a aplicação do domínio público sobre as exclusivas de patentes após o término do prazo legalmente previsto.
Certo é que caberá aos julgadores debruçarem seus estudos sobre os aspectos que envolvem a data do início de vigência de TRIPS em seus países membros.
O tema demanda profundas interpretações quanto a aplicação dos vários prazos possíveis, ante aos artigos 3,4,5, conforme Arts. 65.1, 65.2 e 3, bem como as regras que deram origem as questões da “pipeline”, art. 230 e 231 da Lei 9.279/96.
Cabe frisar a evolução do entendimento doutrinário e jurisprudencial quanto ao não reconhecimento da possibilidade da prorrogação das patentes já existentes.
Conclusão
Os embates jurídicos a respeito deste breve estudo, como já foi citado, ocorrem desde o surgimento do GATT e da última Rodada do Uruguai, sendo certo que o objetivo, naquela ocasião, foi o de aprovar uma acordo constitutivo de um órgão específico para regular o comércio mundial (OMC), fazendo parte deste, como um de seus anexos, o Acordo TRIPS. Com isso, a matéria passou a ter novos contornos buscando sua maturidade jurídica quanto a proteção dos titulares dos direitos de propriedade intelectual.
A Lei 9.279/96 (Lei de Propriedade Industrial) é o resultado do compromisso assumido pelo Brasil de regulamentar os tratados internacionais dos quais figura como signatário às necessidades de adequação, às aplicações de normas e aos fundamentos na visão da legislação nacional.
Esperamos que a questão sobre a aplicação e o início de vigência do Acordo TRIPS no Brasil permaneça sendo objeto de estudo por longos anos, de forma a enriquecer, ainda mais, as discussões que este importante tema de Propriedade Intelectual impõe.
Se você tem dúvidas, sugestões ou deseja obter maiores informações sobre este artigo envie um email para coluna@hermesadvogados.com.br.
Bibliografia
– O TRIPS – Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights integra o Acordo Constitutivo da Organização Mundial do Comércio (OMC), como seu ANEXO 1C. O TRIPS, nos países de língua latina é conhecido pela sigla “ADIPIC – Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados com o Comércio”. Vide: Decreto Presidencial n.º 1.355, de 30 de dezembro de 1994.
Art. 27 (“Matéria Patenteável”)… 3) Os Membros também podem considerar como não patenteáveis:…(b) plantas e animais, exceto micro-organismos e processos essencialmente biológicos para a produção de plantas ou animais, excetuando-se os processos não biológicos e microbiológicos. Não obstante, os Membros concederão proteção a variedades vegetais, seja por meio de patentes, seja por meio de um sistema ‘sui generis’ eficaz, seja por uma combinação de ambos. O disposto neste subparágrafo será revisto quatro anos após a entrada em vigor do Acordo Constitutivo da OMC.”
Art. 65 (“Disposições Transitórias”) “1- Sem prejuízo do disposto nos parágrafos 2, 3 e 4, nenhum Membro estará obrigado a aplicar as disposições do presente Acordo antes de transcorrido um prazo geral de um ano após a data de entrada em vigor do Acordo Constitutivo da OMC”. “2 – Um país em desenvolvimento Membro tem direito a postergar a data de aplicação das disposições do presente Acordo, estabelecida no parágrafo 1, por um prazo de quatro anos, com exceção dos artigos 3, 4 e 5”.
– O assunto sobre as atividades das empresas transnacionais é muito bem explicado em BAPTISTA, Luiz Olavo. Empresa transnacional e direito. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1987.
– O estudo aprofundado da história das negociações da Rodada do Uruguai, e seus resultados podem ser vistos em: Celso Lafer, A OMC e a regulamentação do comércio internacional – Uma visão brasileira; Daniel Gervais, The TRIPS agreement – Drafting history and analysis; Fereydoun A. Khavand, Le nouvel ordre commercial mondial – du GATT à l’ OMC; Patrick Messerlin, La nouvelle Organisation Mondiale du Commerce; Michel Rainelli, L’ Organisation Mondiale du Commerce; Alberto Cerviño e Cerro Prada, GATT y propiedad industrial; Daniel Zuccherino e Carlos Mitelman, Marcas y patentes en el GATT – Régimen legal; Thiébaut Flory, La Communauté Européenne et le GATT – Évaluation des accords du cycle d’Uruguay; Lígia Costa, OMC – manual prático da rodada do Uruguai; são oportunos, também, os resultados do “Colloque de Nice” sobre La réorganisation mondiale des échanges – Problèmes juridiques, publicados pela Société Française Pour le Droit International, 1996.
– LAFER, Celso. A OMC e a regulamentação do comércio internacional: uma visão brasileira. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998.
BAPTISTA, Luiz Olavo. “A nova lei e o TRIPS”. In Anais do XVI Seminário Nacional de Propriedade Intelectual. Revista da ABPI, 1996. p. 17.
– MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. Vol II 4. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1983.- CERQUEIRA, João da Gama. Tratado de Propriedade Industrial. Parte I, Forense, 1946.