Recentemente, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu, em julgamento de Recurso Especial (nº 1.184.492-SE), cuja relatoria coube à Ministra Nancy Andrigui, que o cônjuge supérstite (sobrevivente) não pode exercer o direito real de habitação sobre imóvel que também pertença aos irmãos do cônjuge falecido, ao tempo da abertura da sucessão.

Para melhor ilustrar a polêmica decisão do STJ, imagine a seguinte situação:

A e B são casados e moram num apartamento que está registrado em nome de A e dos seus 2 irmãos (a quota-parte de cada irmão sobre o apartamento é de 1/3). Com o seu falecimento, A deixa para B, como único patrimônio de herança, apenas a sua quota-parte sobre o imóvel em que residiam, ou seja, 1/3. Neste caso, B não poderia invocar o direito real de habitação para permanecer residindo no apartamento, uma vez que o imóvel também pertencia ao irmãos do falecido.

Mas, podemos dizer que a decisão tomada pelo STJ foi correta? E, afinal de contas, o que é o Direito Real de Habitação e como as pessoas podem exercê-lo?

Para que essas e outras perguntas sejam respondidas, mostra-se necessário que, primeiramente, façamos uma pequena abordagem sobre o conceito mais comum que é utilizado pela doutrina especializada e pela jurisprudência brasileira sobre o direito real de habitação, pontuando, sobretudo, aspectos que envolvem a sua forma de exercício pelos titulares, para que, num momento seguinte, possamos, de fato, analisar algumas das principais controvérsias sobre este delicado tema de direito de família que gradativamente se faz presente no judiciário brasileiro, tudo isso com vistas a proporcionarmos uma melhor compreensão sobre o assunto pelos nossos leitores, que é o nosso principal objetivo.

 I – O CONCEITO

 A definição do conceito de direito real de habitação é aquela que o vincula ao direito de moradia que é concedido a uma pessoa, a título gratuito, sobre imóvel alheio, após o término do vínculo familiar do matrimônio ou da união estável, com exercício pleno, absoluto, vitalício e independente de qualquer direito hereditário.

 Em outras palavras, conceituamos o direito real de habitação como o direito que o cônjuge e o companheiro possuem de, uma vez terminado o vínculo familiar do casal (divórcio ou falecimento), continuarem residindo no único imóvel da família durante o tempo da sua sobrevida (até a morte), sem que qualquer direito sucessório ao qual façam jus seja prejudicado.

O exercício do direito real de habitação se dá de maneira plena, absoluta, vitalícia, sendo oponível contra terceiros e não possui nenhuma correlação com o direito à herança ao qual o cônjuge supérstite ou o companheiro tenham direito por força do regime de bens outrora adotado na relação afetiva findada.

 II- AS PRINCIPAIS ALTERAÇÕES PROMOVIDAS PELO CÓDIGO CIVIL DE 2002   

O estado civil do cônjuge supérstite e o regime de bens adotado na relação matrimonial desfeita constituem, por assim dizer, pressupostos de validade para o exercício do direito real de habitação, os quais sofreram profundas modificações, com a entrada em vigor do novo código civil, tornando-se mais “flexíveis”, se comparado com o antigo regime do código civil de 1916.

Com efeito, segundo o código civil revogado, o direito real de habitação somente poderia ser exercido se o regime de bens adotado pelo casal fosse o da comunhão universal, sendo aplicável apenas durante o estado de viuvez do cônjuge supérstite, isto é, até que contraísse novo casamento e, ainda, desde que o imóvel objeto de moradia fosse o único da família. É o que dizia o §2º do artigo 1.611 do CC/16:


“Ao cônjuge sobrevivente, casado sob o regime da comunhão universal, enquanto viver e permanecer viúvo será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único bem daquela natureza a inventariar.”


 Por outro lado, com a entrada em vigor do novo código civil em 2002, duas profundas modificações foram sentidas nos chamados pressupostos de validade do direito real de habitação.

Uma delas foi a extinção da obrigatoriedade de adoção de qualquer regime de bens específico para que o direito real de habitação pudesse ser exercido, ou seja, com o novo código civil de 2002, qualquer que fosse o regime de bens adotado pelo casal (comunhão universal, comunhão parcial de bens ou separação total) o direito de moradia poderia ser exercido sobre o único imóvel da família, plenamente, pelo cônjuge supérstite, desde que atendidos os demais pressupostos legais.

A outra modificação se deu pelo fato de que com o novo código civil deixou de ser necessário o permanente estado de viuvez do cônjuge supérstite para que o mesmo pudesse continuar exercendo seu direito real de habitação, isto é, a partir de então, o gozo de tal direito não se extingue para o cônjuge supérstite ainda que este venha a contrair novo matrimônio ou união estável, podendo, então, permanecer residindo naquele imóvel de forma vitalícia ou até o seu falecimento.

Por fim, ressalta-se que o pressuposto quanto à necessidade do imóvel ser o único bem de família, antes previsto no artigo 1611, §2º do CC/16, não sofreu qualquer alteração com a entrada em vigor do novo código civil e, por isso, permaneceu válido, sendo reproduzido no artigo 1831 do novo diploma, que assim dispõe:


 “Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar.”


Desta maneira, fica claro entender que com as modificações introduzidas pelo novo código civil o direito real de habitação se tornou mais contemporâneo com as evoluções pelas quais a sociedade vem passando nos últimos anos em suas relações familiares e, ainda, mais forte e presente na vida das pessoas como importante instrumento do direito à moradia, como garantia constitucional que é prevista no artigo 6º, caput da Carta Maior.

III- O REGIME DE BENS APLICÁVEL

 O regime de bens adotado pelo casal no casamento foi um dos aspectos modificados pelo novo código civil de 2002 como condição para o exercício do direito real de habitação, uma vez que, anteriormente, com o antigo código civil, tal exercício apenas era cabível quando o regime de bens fosse o da comunhão universal, o que não mais acontece, considerando que o novo diploma civil estabelece que o direito real de habitação poderá ser invocado pelo cônjuge supérstite independentemente do regime de bens outrora adotado no matrimônio desfeito.

 IV-  O ESTADO CIVIL DO CÔNJUGE SUPÉRSTITE

 Durante a vigência do código civil revogado, o direito real de habitação somente poderia ser exercido pelo cônjuge supérstite enquanto perdurasse seu estado de viuvez, ou seja, até que se casasse novamente ou contraísse relação de união estável, como previsto no artigo 1.611, §2º daquela codificação.

Todavia, com o novo código civil aquela obrigatoriedade deixou de existir, tendo em vista que o legislador infraconstitucional ficou silente sobre o assunto ao elaborar o artigo 1.831.

Assim, diante da referida omissão normativa, a corrente majoritária da doutrina e da jurisprudência brasileira passaram a admitir a vitaliciedade do exercício do direito real de habitação pelo cônjuge supérstite ainda que esta modifique seu estado civil com novo casamento ou união estável.

V- CONCORRÊNCIA ENTRE HERDEIROS NÃO COMUNS AO CASAL: PONDERAÇÃO ENTRE DIREITO REAL DE PROPRIEDADE X DIREITO REAL DE HABITAÇÃO

 O direito real de habitação será garantido ao cônjuge supérstite e a sua prole, ainda que existam herdeiros não comuns ao casal como frutos de outra relação afetiva do autor da herança.

Em outras palavras, mesmo que o autor da herança tenha herdeiros oriundos de outro relacionamento afetivo que não aquele mantido com o cônjuge supérstite, seja ele anterior ou concomitante, permanecerá o cônjuge supérstite com a garantia ao direito real de habitação sobre o único imóvel da família, podendo nele residir com seus filhos até o seu óbito, quando, então, concorrerão todos os herdeiros dos ascendentes sobre tal patrimônio respeitados os quinhões hereditários.

Entretanto, releva notar que tal posicionamento não se mostra unânime na doutrina e na jurisprudência brasileira, pois para uma parte delas o direito real de habitação é aplicável apenas para o mesmo grupamento familiar, consubstanciando-se no dever mútuo de solidariedade, fraternidade e auxílio entre os membros da família, valendo tecer, a este respeito, os ensinamentos da majestosa jurista Maria Berenice Dias:


 “A solidariedade é o que cada um deve ao outro. Esse princípio, que tem origem nos vínculos afetivos, dispõe de acentuado conteúdo ético, pois contém em suas entranhas o próprio significado da expressão solidariedade, que compreende a fraternidade e a reciprocidade. A pessoa só existe enquanto coexiste. O princípio da solidariedade tem assento constitucional, tanto que seu preâmbulo assegura uma sociedade fraterna. Também ao ser imposto aos pais o dever de assistência aos filhos (CF 229), consagra o princípio da solidariedade. O dever de amparo às pessoas idosas (CF 230) dispõe do mesmo conteúdo solidário.

Uma das técnicas originárias de proteção social que até hoje se mantém é a família. Aproveita-se a lei da solidariedade no âmbito das relações familiares. Ao gerar deveres recíprocos entre os integrantes do grupo familiar, safa-se o Estado do encargo de prover toda a gama de direitos que são assegurados constitucionalmente ao cidadão.”

(Dias, Maria Berenice, Manual de direito das famílias, 6ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2010, pag. 67).


Assim, para esta corrente minoritária, justificado se mostra o direito real de habitação para o cônjuge supérstite como forma de conferir máxima efetividade à manutenção do grupamento familiar, formado pela mesma linha de ascendência, onde o direito de propriedade dos herdeiros sobre o único imóvel da família acaba sendo mitigado temporariamente em prol do direito à habitação do cônjuge supérstite durante a sua sobrevida.

Esta linha de posicionamento, inclusive, foi melhor explorado e adotado pela ministra Nanci Andrigui no julgamento do RESP/SP nº 1134387, do qual foi relatora e teve seu voto vencido, quando, então, prevaleceu a tese majoritária quanto à prevalência do direito de moradia mesmo diante da inexistência de unidade familiar homogênea.

VI- DISPENSABILIDADE DO REGISTRO IMOBILIÁRIO

O direito real de habitação pode ser exercido pelo cônjuge supérstite após o término da relação matrimonial (falecimento ou divórcio) independentemente de ser levado a registro em cartório, posto que sua garantia se dá automaticamente por força de lei.

VII-   UNIÃO ESTÁVEL

O código civil de 2002 é silente em seu artigo 1.831 quanto à aplicação do direito real de habitação às relações de união estável, fazendo expressa menção apenas ao casamento, o que, a princípio, poderia gerar uma série de dúvidas nas pessoas enquadradas em relações afetivas desta natureza.

Contudo, apesar da mencionada lacuna normativa urge salientar pela permissiva aplicação do direito real de habitação às relações entre companheiros (União Estável), com base em questão principiológica de isonomia conferida pela Constituição Federal, em seu artigo 226, § 3º, que reconhece à União Estável a condição de entidade familiar, garantindo-lhe os mesmos direitos e deveres do casamento.

Outro fator positivo se dá pela própria lei nº 9.278/96 que concede diretamente às pessoas que vivem sob o manto da União Estável o direito de moradia para o companheiro supérstite sobre o único imóvel da família.

Seja por um ou outro argumento, acreditamos no acerto de tal linha de posicionamento, atribuindo-se à União Estável as mesmas prerrogativas do casamento quanto ao exercício do direito real de habitação, através de uma interpretação extensiva do artigo 1.831 do Código Civil de 2002, em benefício maior da família, enquanto instituição, e das relações de solidariedade, fraternidade e de mútua cooperação entre seus membros.

VIII – A PROBLEMÁTICA DO DIREITO REAL DE HABITAÇÃO SOBRE IMÓVEL TAMBÉM PERTENCENTE À TERCEIROS ESTRANHOS AO GRUPAMENTO FAMILIAR

 Superados os pontos acima debatidos, impende debatermos, neste momento, o caso citado no início deste artigo acerca do posicionamento adotado pela 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça que, ao julgar o RESP 1.184.492-SE, negou o direito real de habitação para um cônjuge supérstite, sob o fundamento de que a propriedade sobre o único imóvel da família da recorrente também pertencia aos irmãos do autor da herança, que nenhuma relação guardavam com o grupamento familiar da postulante.

Considerando os pontos até aqui analisados sobre o conceito e as principais modificações sofridas pelo direito real de habitação com a entrada em vigor do novo código civil de 2002, mostra-se pertinente, neste passo, debatermos acerca do posicionamento adotado pelo STJ no caso citado acima, de modo a espancarmos qualquer dúvida que porventura possa existir acerca desta situação tão comum no cotidiano das famílias brasileiras e que, na grande maioria das vezes, apenas é solucionada com o crivo do poder judiciário.

Por força do que foi estudado neste artigo podemos dizer que a decisão do STJ foi acertada? Parece-nos que sim.

Como já amplamente debatido nas linhas anteriores, o direito real de habitação se fundamenta no direito de moradia, que é garantido ao cônjuge supérstite sobre o único imóvel da família, uma vez extinto o vínculo mantido com o outro cônjuge ou companheiro (casamento ou união estável), uma vez atendidos os requisitos legais do artigo 1.831 do CC/2002, com a premissa maior de preservação do grupamento familiar, ainda que desfeito o vínculo entre os ascendentes, através condutas principiológicas traduzidas no dever de solidariedade, fraternidade e de mútua cooperação entre os membros que dele fazem parte, como acontece na relação verticalizada entre pais e filhos.

Levando-se em consideração que o objetivo maior das legislações infraconstitucionais (Lei nº 9.278/96 e Código Civil/2002) e da própria Carta Magna, ao normatizarem o direito real de habitação, reside precipuamente na preservação do grupamento familiar através de reciprocidade entre seus integrantes, como, então, fazê-lo prevalecer diante de pessoas que sequer fazem parte da mesma entidade familiar? Como forçá-los a abrirem mão dos seus direitos em prol de uma família de que sequer fazem parte?  Para nós, isso se mostra totalmente incabível.

De um lado ou de outro, certo é que o tema demanda ainda profundas reflexões e, por ora, está longe de atingir uma unidade de entendimento, o que, inclusive, pode ser demonstrado pela própria postura adotada pela 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça que, num intervalo de tempo de aproximadamente 12 meses, entre um julgamento e outro, mudou radicalmente seu entendimento a respeito desta problemática.

No caso mais antigo, citado no item V deste artigo – RESP/SP nº 1134387 – a 3ª Turma do STJ decidiu, por maioria, pela manutenção do direito real de habitação da recorrida, negando provimento ao recurso especial, mesmo diante da existência de direito hereditário de terceiros, não integrantes do mesmo grupamento familiar do cônjuge sobrevivente, sobre o único imóvel deixado pelo falecido (herdeiros do cujus provenientes de outra relação afetiva).

Já no julgamento do RESP 1184492 – muito embora estivesse diante de situação idêntica ao do primeiro caso – a 3ª Turma daquela Corte Superior acabou se posicionando de maneira completamente diversa, quando, então, afastou, por decisão unânime, o direito real de habitação do cônjuge sobrevivente sobre o único imóvel de sua família, pelo fato do imóvel também pertencer a terceiros estranhos ao grupamento familiar do autor da herança, o que, portanto, demonstra como toda esta problemática, que envolve o direito real de habitação quando confrontado com direito de terceiros estranhos à unidade familiar, ainda está longe de se tornar pacificada em nosso ordenamento jurídico.

IX -CONCLUSÃO

Diante do que foi exposto e analisado neste artigo, verifica-se, de maneira geral, que o direito real de habitação mostra-se como um importante instrumento de direito de família, criado pelo legislador infraconstitucional, com o objetivo principal de garantir a harmonização e o equilíbrio no seio familiar.

As modificações sofridas pelo direito real de habitação, ao longo do tempo, com o novo código civil de 2002 e a Lei nº 9.278/96, foram cruciais para que tal instituto acompanhasse as evoluções pelas quais a sociedade passou no mesmo período, sobretudo, no âmbito familiar, impulsionadas pelas merecidas conquistas obtidas pelo público feminino nos aspectos social e profissional.

Em paralelo a isso, a aplicação do direito real de habitação deve se dar exclusivamente no mesmo grupamento familiar, em prol do dever mútuo de cooperação e de solidariedade entre seus membros, não havendo óbice para sua mitigação sempre que confrontado com direito de terceiros estranhos àquele núcleo afetivo.

Por fim, o tema ainda é bastante controvertido na doutrina brasileira e em nossos tribunais, demandando profundas reflexões acadêmicas, doutrinárias e jurisprudenciais, sobre diversas das suas vertentes de aplicação, assim como tentamos fazer através deste artigo, para o bem maior de toda a sociedade.

Se você tem dúvidas, sugestões ou deseja obter maiores informações sobre este artigo envie um email para coluna@hermesadvogados.com.br.

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