A propriedade intelectual e o direito do consumidor formam dois sistemas jurídicos distintos, igualmente previstos na Constituição Federal de 1988 e exercem, segundo a sistemática própria de cada um, papéis fundamentais para o desenvolvimento cultural e econômico do nosso país.

Visa a propriedade intelectual tutelar a proteção de direitos relacionados a propriedade de bens imateriais, buscando garantir aos seus titulares o exercício, pleno e absoluto dos seus direitos, além de coibir a prática de condutas que possam violar ou colocar em risco qualquer das prerrogativas inerentes a tais direitos, segundo as legislações nacionais e estrangeiras que regulamentam a matéria.

Já o direito do consumidor, por sua vez, tem o escopo de proteger as relações jurídicas decorrentes de uma relação de consumo, fundamentando-se na necessidade de garantir ao consumidor, o pólo hipossuficiente da relação de consumo, regras que lhe permitam uma posição mais equilibrada na relação travada com os grandes fornecedores de produtos e serviços do país.

Apesar desta aparente diferença entre os dois institutos, é de se destacar que é possível se extrair a existência de um vínculo entre a propriedade intelectual e o direito do consumidor, considerando que a maioria dos bens intelectuais é explorada economicamente e consubstanciada em bens materiais cujo destinatário final é exatamente o consumidor.

 A propriedade intelectual

De origem histórica que remonta ao século XV, com a concessão de privilégios de inventos pelos monarcas, atualmente, o direito de propriedade intelectual, abrange uma gama variada de bens intelectuais com características próprias, mas que comungam o fato de serem bens imateriais (corpus mysticum) que, uma vez tornados públicos, podem, em tese, ser facilmente reproduzidos, transformados e aplicados em um bem material (corpus mecanichum).

A possibilidade de reprodução destes bens imateriais se apresentou como um empecilho para o surgimento de novos bens intelectuais, uma vez que, a princípio, todos, sem exceção, teriam acesso àquele bem sem qualquer tipo de esforço. Com isso, os criadores de bens intelectuais acabavam desprestigiados e desmotivados.

Por tal razão, surgiu o direito de propriedade intelectual, com escopo de garantir que o titular de um bem intelectual pudesse, não somente fazer uso desse bem, mas também impedir que terceiros desautorizados o reproduzirem.

Assim, ao garantir que o titular de um bem intelectual pudesse explorá-lo economicamente por um certo período, permitindo a sua remuneração, acaba se criando, na verdade, um sistema de recompensa para os autores e inventores, uma vez que estes serão estimulados a, cada vez mais, criarem novos bens intelectuais e torná-los públicos, fomentando, por consequência, a produção intelectual e a própria economia do país.

Quando um Estado confere a um inventor uma patente sobre uma tecnologia, por exemplo, tutela-se não somente o bem imaterial e a proteção do seu titular, como também os interesses da própria sociedade na qual o titular está inserido, diante da possibilidade de exploração daquela tecnologia incorporada naquela patente ao final do prazo legal de exclusividade.

Note-se, portanto, que apesar de ser um ramo com evidente caráter privado, uma vez que tutela uma das máximas manifestações da individualidade do ser-humano, a propriedade, a ratio legis do Direito de Propriedade Intelectual visa, acima de tudo, alcançar interesses públicos de desenvolvimento cultural, econômico e tecnológico da sociedade.

E foi exatamente com este espírito que foi criada a primeira norma sobre a propriedade intelectual no Brasil, o Alvará de 28 de abril de 1809, de autoria do Príncipe Regente D. João VI, cujo caráter publicista foi seguida em normas posteriores.

Podemos observar que, ao longo do desenvolvimento do direito de propriedade intelectual, até os dias atuais, a ratio legis se manteve a mesma: alcançar o interesse público de desenvolvimento intelectual e econômico, através de regras de cunho privado que garantem aos titulares de bens intelectuais a sua exploração exclusiva por um período determinado e aplicação de normas que coíbem práticas de concorrência desleal.

Por tal razão, muitas vezes, o direito da propriedade intelectual será limitado para que se atenda ao interesses públicos previstos em outras normas e princípios previstos em outros dispositivos legais, como, por exemplo, acontece com a concessão de licença compulsória de patentes de ofício, a proibição de registro como marca de sinais genéricos, a limitação de remessa de royalties em contratos de transferência de tecnologia e as limitações aos direitos autorais dispostas no artigo 46 da Lei nº 9.610/98.

O Direito do consumidor

O Direito do Consumidor tem sua origem mais remota na revolução industrial, cujo gradativo avanço tecnológico acabou provocando não apenas no aumento da oferta de produtos e serviços, assim como no próprio crescimento demográfico e, por consequência, pela maior demanda por esses produtos, cada vez mais, industrializados com o passar o tempo.

Nesse contexto, com o aumento significativo do consumo, as relações jurídicas entre consumidor e fornecedores de produtos e serviços ganharam novos contornos e se verificou a necessidade da criação de regras, que permitissem ao consumidor uma posição menos desfavorável diante da sua hipossuficiência econômica/técnica/financeira.

No Brasil, essa proteção específica se instrumentalizou, efetivamente, com o advento da Lei nº 8.078 de 11 de setembro de 1990, o Código de Defesa do Consumidor, que traz em seu bojo uma série de normas e princípios de proteção ao consumidor, muito embora a referida tutela ao consumidor já estivesse guarnecida pela  Constituição Federal de 1988 que, em seu bojo, dispõe sobre a proteção do consumidor como um direito individual e um dos princípios da ordem econômica financeira.

Destaque-se, ainda, que, embora preveja normas de natureza evidentemente pública, o Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 4º, determina como um dos princípios da Política Nacional das Relações de Consumo matérias pertinentes com o Direito de Propriedade Intelectual, o que, talvez, possa demonstrar um vínculo entre a propriedade intelectual e o direito do consumidor.

A intercessão entre a Propriedade Intelectual e o Direito do Consumidor

Diante da análise da origem, fundamento e escopo do Direito de Propriedade Intelectual e do Direito do Consumidor, é possível verificar que eles são originariamente bem distintos e tutelam protagonistas e bens diversos.

Direito de Propriedade Intelectual não tem como função a proteção dos consumidores, mas sim garantir ao titular da propriedade intelectual que terceiros desautorizados não façam uso de seu bem intelectual. Da mesma forma, o Direito do Consumidor, como regra de ordem pública, não se destina a tutelar a propriedade de bens intelectuais.

Então, onde estaria a intercessão?

A doutrina pátria especializada se mostra divergente no enfrentamento desta questão, mas, em que pese opinião que entende pelo total afastamento entre estes ramos, verificamos que o direito da propriedade intelectual não é nem pleno, nem independente dos outros sistemas jurídicos.

Como já salientado, a sua criação se deu em razão, também, de interesses públicos e, atualmente, diante da “constitucionalização do direito civil”, que faz uma análise sistêmica do direito civil à luz de princípios constitucionais como função social da propriedade, o princípio da dignidade humana, o princípio da isonomia, entre outros, não se pode negar que a propriedade intelectual deve se coadunar e interagir com outros ramos do direito.

Por exemplo, é com fundamento no entendimento de que há interesse público de impedir a remessa de divisas para o exterior que o Instituto Nacional da Propriedade Industrial –  INPI  limita a remessa de royalties em contratos de transferência de tecnologia, ou ainda, com base no princípio à informação é que é permitida a reprodução de obras autorais na imprensa para fins de notícia ou de artigo informativo.

Da mesma forma, em algumas hipóteses, o Direito do Consumidor será levado em consideração e atuará como fundamento para a limitação dos direitos de propriedade intelectual.

O INPI, igualmente, em diversas oportunidades, já manifestou seu posicionamento no sentido de também possuir a função de proteger os interesses do consumidor, como, por exemplo, nos casos em que os titulares de duas marcas semelhantes assinam acordo de coexistência, mas aquela autarquia federal, ainda assim, acaba indeferindo o registro de uma das marcas, com fundamento na proteção ao consumidor final.

Nesse passo, a relação entre a propriedade intelectual e o direito do consumidor pode ser mais facilmente verificada em casos de concorrência desleal, como a cópia ou imitação de trade dress, uso de link patrocinado e outras formas de desvio de clientela por meio fraudulento, assim como em casos de confusão entre marcas, onde o consumidor exercerá papel fundamental para a averiguação da prática de ato ilícito ou da registrabilidade da marca.

Podemos ainda citar como outros exemplos dessa intercessão a necessidade do correto uso de indicação geográfica à luz dos princípios da veracidade e da informação, ou a extensão das limitações dos direitos autorais, a fim de permitir a cópia integral de obras autorais fora de circulação para uso privado.

 Conclusão

Como se verifica, ainda que a Propriedade Intelectual não tenha o escopo de proteger o consumidor, inclusive, pois existe toda uma legislação para tanto, a sua utilização não pode ser contrária aos princípios e normas do Direito do Consumidor.

A análise sistemática e conforme a constituição federal implicará sempre no uso dos direitos de Propriedade Intelectual sob o prisma e limitação do interesse público e, sendo o Direito do Consumidor uma matéria de ordem pública, será tutelado pelo Direito de Propriedade Intelectual, da mesma forma que o tutelará, daí decorrendo essa relação recíproca entre esses ramos do direito.

Este artigo foi elaborado pelos advogados Eduardo Hermes Barboza da Silva, Lucas Bernardo Antoniazzi e Myriam Barandier no curso de pós-graduação de Direito da Propriedade Intelectual na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC/RIO.

Se você tem dúvidas, sugestões ou deseja obter maiores informações sobre este artigo envie um email para coluna@hermesadvogados.com.br.

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